Por Claudia Zogheib
Cancelar no sentido de eliminar o outro é uma atitude muito mais comum do que se imagina, e sem que possamos calcular, a dimensão desta prática, tal atitude, prejudica não só o cancelado, mas também quem cancelou: é uma atitude que tem muito em comum com o sadismo, um comportamento caracterizado pelo prazer em ver o outro sofrer, normalmente atrelado a não conseguir conviver com o sucesso do outro.
Quando parte de uma base que pode legitimar qualquer prática de opressão, muitas vezes revestido de moralidade, mascara o prazer de destruir o outro apontando-lhe erros, permanecendo atrelado a uma forma de fugir de suas próprias falhas: mantém o ‘Eu’ num ideal de valoração máxima e o outro num lugar secundário.
O narcisismo nos faz ver o outro imaginariamente conseguindo alcançar lugares e objetivos que secretamente seriam desejos que não se conseguiu conquistar, e a partir de então, se tenta destruir ou diminuir a conquista do outro: desmerecendo, usando poderes sociais, cancelando, etc. É como se o outro conseguir lembrasse que poderia ter sido quem está se sentindo ameaçado pela conquista do outro. Este é o roteiro que move a competição com o próximo quando não se consegue enfrentar o próprio narcisismo e destrutividade.
Freud em seus escritos relatava constantemente que a rivalidade apertava diante do próximo ou com pessoas que de alguma forma podiam representar uma ameaça, e sempre estudou estes fenômenos nas relações. Ele dizia que somos um conjunto de vários “Eus” sentindo coisas que não gostaríamos de sentir e o que de fato determina o nosso pensamento e ação está atrelado aos denominadores inconscientes que impulsionam nossas ações primitivas: o “Eu” não é senhor nem em sua própria morada quando opera com atitudes destrutivas.
A inveja é originária da intensificação do ódio, que mobilizado pela pulsão de morte, se volta contra o próprio sujeito invejoso. Ambos caminham juntos, e enquanto nos deixamos dominar por estes sentimentos, cancelamos, tentamos diminuir, desmoralizamos para que o outro não seja, para que o outro não tenha, para que o outro não apareça, e tais atitudes tem como consequência o distanciamento do contato do invejoso com seu próprio ser.
Ainda estamos no funcionamento arcaico, continuamos mantendo a atenção do outro sobre nós buscando seu olhar para validar nossas fraquezas. Quando estamos neste funcionamento ficamos incomodados diante do sucesso do outro, e nesta dinâmica, perdemos um potencial de transformação sobre nossas próprias atitudes diante de nós mesmos.
“Cada vez que um amigo meu faz sucesso, eu morro um pouco. Por que tanta gente se incomoda com a ascensão de pessoas iguais ou próximas?”
Gore Vidal
Sendo mais ou menos escancarado, intencionalmente consciente, ou inconscientemente, quando cancelamos o outro, de certa forma é de nós que estamos falan必利勁
do: perdemos.
Cancelar é algo a se atentar, a se manter cuidado, visto o tamanho estrago que uma atitude assim pode fazer na vida do outro e na nossa. E quanto mais negamos esta realidade, mais distantes ficamos de acessar, pensar e transformar tal atitude em algo mais elaborado e construtivo para todos.
Em tempo, este texto foi escrito ao som da música: “Bandeira Branca”, com Maria Bethânia.
6 Comentários
Sempre uma via de mão dupla…. Contudo, uma via não dual!
Sim, dura realidade. Obrigado
Obrigada! Muito importante para todos nós e em particular para quem quer construir um mundo melhor, unido.
Obrigada! Compartilho da mesma ideia! Abraço
Este texto é muito real e verdadeiro, parabéns a Claudia Zogheib que encanta com seus belíssimos e profundos textos. Uma verdadeira reflexão ainda mais nos tempos que estamos vivendo.
Obrigado Dr. Zugaibe! Abraço