Claudia Zogheib
Para amar o outro é necessário
sair da armadilha do narcisismo,
esvaziar o próprio narcisismo.
Em nossa sociedade a religião sempre esteve presente e o diálogo entre psicanálise e religião nunca foi tarefa fácil. O preconceito, o medo e quem sabe também os mecanismos inconscientes impossibilitaram encarar o tema com coragem para escutar aquilo que talvez a outra parte tenha a dizer e até mesmo para entender verdadeiramente os dois lados.
No complexo parental a raiz da necessidade religiosa de um Deus justo e todo-poderoso e a natureza bondosa se transfiguram como sublimação grandiosa, restaurando e restabelecendo a representação dos pais na primeira infância onde a religiosidade remete ao desamparo e necessidade de ajuda enquanto reconhece a própria impotência diante da potência da vida, retornando num funcionamento onde procura negar seu estado de abandono, reeditando a potência protetora da mesma.
A proteção que a religião oferece aos que são crentes, evitando que eles caiam doentes de neurose, se explica pelo fato de que ela os desembaraça do complexo parental ao qual está ligada a consciência de culpabilidade, seja do indivíduo ou da humanidade, liquidando o complexo ao passo que o descrente tem que cumprir esta tarefa sozinho.
Enquanto constatação, ser crente ampara o indivíduo enquanto existência, mas enquanto conceito de ilusão, o que sustenta é o fato de ser amado e protegido por um ser superior e imparcial que não convoca a olhar as próprias atitudes.
A meu ver o grande equívoco não está em sentir necessidade de crer em algo, mas em sentir-se onipotente a ponto de se achar portador da verdade não olhando a própria capacidade destrutiva, crendo que não é capaz de cometer atrocidades se não considerar que o bem e o mal coabitam em todos sem exceção. E como gravidade, fazer muitos ao redor acreditarem que suas ações não necessitam serem analisadas enquanto condição de “protagonismo de uma verdade” tendo como agravante pessoas ao redor que lhe tomam como exemplo, tornando-se a concretização do mal pelo mal, da destrutividade pela destrutividade, em nome de algo que crê e defende.
Ser devoto se refere a se dedicar a algo que lhe serve como exemplo, mas sobretudo em usar os ensinamentos de quem admira na busca de amparo e exemplo de vida assim como num momento de dificuldade, em pessoas que se unem ao redor das mesmas intenções para evocar suas crenças, mas em ambos os casos, nunca para se sentir onipotente e imune à condição do bem e do mal, um grande equívoco sem precedentes.
Como meio para alcançar imunidade, a sociedade se apresenta num processo de subjetivação de forma retroativa, e enquanto toma o lugar da ilusão, as possibilidades de soluções perversas tornam-se uma ameaça para a manutenção do laço social transparente e de qualidade, em relação contraditório com o transcendental.
A transcendência fala da vida e morte como possibilidade de existência em algo que está além do terreno, procurando explicação na tentativa de compreender os sentidos, e enquanto não adentra o cerne da própria condição continua a cometer erros.
A transmissão da religiosidade por muitas gerações esteve presente em nossa história e assim continuará sendo, e na medida em que nossa capacidade de compreender o humano em nós não se confunde com modelos equivocados, estaremos quem sabe assim abrindo possibilidade de confluência.
A devoção deveria estar em relação direta com nossas próprias atitudes enquanto sujeitos, que enquanto busca conexão com o divino, torna-se curioso e atento a respeito das próprias atitudes.
O sincretismo enquanto forma de transmissão das transferências religiosas resultam em inúmeros amálgamas que refletem a soma de diferentes idiossincrasias étnicas que são modelos de nossa cultura, e para tanto, fazem parte do arcabouço transgeracional.
Diante das circunstâncias adversas como os desencontros, a guerra, a destrutividade gerada pela violência e poder, crer em algo ampara e dá suporte aos crentes diante das dores e maldades que coabitam a existência enquanto sociedade.
Despertar aproxima ao se constatar que a garantia narcísica transportada pelo símbolo do poder é furada ao se deparar com a verdade de que seu “eu” não é o senhor nem em sua própria casa.
Música “Schubert: Piano Trio No. 2”, op. 100 (D929) / Isabelle Faust, Sol Gabetta, Kristian Bezuidenhout
1 comentário
Parabéns pelo texto Devoção e Sincretismo. Neste mundo cada vez mais este texto é fundamental.