Por Nanda Cattani
“Ele nunca me bateu.”
Eu repetia essa frase para mim mesma, tentando me convencer de que aquilo não era abuso.
Mas então, por que eu sentia medo?
Medo de falar algo errado e ver sua expressão mudar. Medo de um olhar frio que dizia muito mais do que qualquer palavra. Medo de voltar para casa e encontrar uma tempestade esperando por mim, sem saber se seria apenas uma discussão ou algo pior.
Violência doméstica não começa com um tapa. Ela começa com o medo.
O medo de desagradar, de contrariar, de ser quem você realmente é. Começa com frases que diminuem, que desvalorizam, que fazem você se sentir pequena dentro da própria vida. Começa com “Ninguém mais te quer”, “Se você sair daqui, não terá ninguém”, “Se você me deixar, eu acabo com você”.
E, para muitas mulheres, essa escalada de abusos tem um fim trágico.
Março é um mês de homenagens às mulheres, mas também é um mês de reflexão. Enquanto celebramos nossas conquistas, é impossível ignorar que muitas de nós ainda vivem com medo, enclausuradas em relacionamentos abusivos, sem saber se conseguirão ver o próximo dia.
A Lei do Feminicídio, sancionada no dia 9 de março 2015, completou 10 anos e foi um avanço importante. Mas a violência doméstica não se combate apenas com leis. Ela se combate com educação, com apoio, com redes de proteção. Combate-se com coragem.
E coragem não falta às mulheres que decidem romper o silêncio. Sei disso porque precisei encontrar a minha.
O Brasil ocupa um lugar vergonhoso no ranking global de feminicídios. São milhares de mulheres assassinadas por homens que disseram amá-las. Homens que confundem amor com posse, respeito com controle, carinho com violência.
Mas antes do feminicídio, vem o ciclo da violência doméstica. E foi dentro desse ciclo que eu vivi por anos.
O Ciclo da Violência: Quando a Casa Se Torna uma Prisão
O que poucos entendem é que a violência doméstica não é linear. Ela não acontece de uma vez. Ela vem em ciclos:
- A tensão Pequenas críticas, chantagens emocionais, silêncio punitivo. A mulher percebe o perigo, mas tenta evitar o conflito. Anda em ovos, muda seu jeito de ser para não desagradar.
- A explosão Pode ser um grito, um empurrão, uma ameaça. Pode ser um tapa. Pode ser pior.
- O arrependimento Ele chora, pede desculpas, diz que nunca mais vai acontecer. Diz que foi um momento de fraqueza, que precisa de você. Diz que te ama. E você quer acreditar.
Então, o ciclo recomeça. Até o pior acontecer…
Muitas mulheres ficam presas nessa dinâmica porque acreditam que podem mudar seus agressores. Outras, porque não têm para onde ir. Algumas, porque ainda amam seus algozes.
Eu fiquei por várias razões, mas o medo me consumia.
O silêncio é a maior arma da violência doméstica.
Por vergonha, muitas mulheres escondem os hematomas — os visíveis e os invisíveis. Criam desculpas, justificam o injustificável. Até que um dia, o silêncio se torna fatal.
Quantas mulheres morrem sem nunca terem contado a ninguém o que viviam? Quantas gritaram, mas ninguém ouviu? Quantas denunciaram, mas não foram protegidas?
O feminicídio é o ápice de uma história que muitas vezes começou com pequenas agressões normalizadas. “Ele tem um gênio difícil.” “Mas ele nunca bateu.” “Ah, ele só é muito ciumento.”
Enquanto aceitarmos essas desculpas, continuaremos perdendo vidas.
Eu gostaria de dizer que minha saída foi rápida e fácil. Que um dia acordei e simplesmente fui embora. Mas não foi assim.
Foi um processo.
Primeiro, veio a consciência. Perceber que aquilo não era normal. Que amor não devia machucar.
Depois, veio o planejamento. Eu sabia que sair de um relacionamento abusivo poderia ser perigoso. Esperei o momento certo. Busquei apoio de amigos, de pessoas que pudessem me ajudar.
E então, um dia, eu desisti. Desisti e lutar por algo que não ia mudar, por uma ideia de relacionamento.
E, pela primeira vez em anos, respirei.
A liberdade tem um preço, mas vale cada centavo.
Se você está vivendo isso agora, saiba que há saída. Não é fácil, mas você não está sozinha. Existem organizações que podem ajudar, amigos que vão te apoiar, redes de proteção esperando para te acolher.
Não espere que o pior aconteça.
Hoje, eu ainda não sou uma mulher totalmente livre, mas ao menos, consigo respirar.
E uso minha voz para todas aquelas que ainda não conseguiram escapar.
Se você conhece alguém que pode estar vivendo violência doméstica, não julgue. Não pergunte “Por que você não sai?”. Pergunte “Como eu posso te ajudar?”.
Se você é essa mulher, eu digo: há uma vida esperando por você do outro lado do medo.
Uma vida onde você pode ser quem quiser, sem medo de desagradar.
Uma vida onde você não tem que pedir desculpas por existir.
Uma vida onde o amor não machuca.
Que este março seja mais do que homenagens e flores. Que seja um mês de transformação, de acolhimento, de coragem.
E que nenhuma de nós precise mais gritar para ser ouvida.
Onde Buscar Ajuda
Na Flórida (EUA)
- Florida Coalition Against Domestic Violence (FCADV) – Coordena serviços de apoio a vítimas. O site pode estar desativado, mas os abrigos seguem funcionando.
- The National Domestic Violence Hotline – Apoio 24/7, com atendentes que falam português. 📞 1-800-799-7233
- Miami-Dade County Domestic Violence & Sexual Assault Center – Oferece serviços para vítimas, incluindo abrigos de emergência. 📞 305-285-5900
- Women In Distress (Broward County) – Assistência legal, abrigo e aconselhamento. 📞 954-761-1133 (24 horas)
- Latinas en Acción – Apoio especializado para mulheres latinas nos EUA. 📞 1-888-772-7453
No Brasil
- Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 – Canal gratuito para denúncias e apoio. 📞 180 (24h)
- Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres – Serviços públicos de acolhimento e proteção.
- Casa da Mulher Brasileira – Assistência social, psicológica e jurídica.
- Instituto Maria da Penha – Conscientização e apoio às vítimas.
- ONG Tamo Juntas – Assistência jurídica e psicológica gratuita.